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O Carnaval e suas memórias

Ontem o GRES Paraíso do Tuiuti se sagrou vice-campeão do Carnaval do Rio de Janeiro. Belo Carnaval, o mais importante resultado dessa grande agremiação. Quanta felicidade!

Ver o Tuiuti nessa colocação me fez viajar 20 anos no tempo. Cheguei naquela quadra como componente de ala e fui Presidente de Ala, Diretor Cultural, Compositor da Escola, Diretor de Harmonia e Comissão de Carnaval. Fui muito feliz junto à sua aguerrida e maravilhosa comunidade, representante do importante e infelizmente abandonado Bairro Imperial.

Foi meu segundo amor de Carnaval por alguns bons anos (sim, sou salgueirense). Escola por muitos desconhecida, mas que lançou importantes carnavalescos da atualidade, como Paulo Barros (que fez o ótimo desfile sobre Portinari), Paulo Menezes (que nos levou a disputar, em 2001, nosso primeiro desfile no Grupo Especial) e Jack Vasconcellos, entre outros com os quais tive oportunidade de trabalhar na quadra e no barracão. 

Parte fundamental desse sucesso se deve ao acerto por parte de seu atual carnavalesco, o competente Jack Vasconcellos, que trouxe para a avenida o pertinente e oportuno enredo: “Meu Deus, Meu Deus, está extinta a Escravidão? “. Ao ler o título do enredo e seu questionamento, recuei ainda mais no tempo, fui a 1968, lembrando do maravilhoso samba da Unidos de Lucas, o imortal “ Sublime Pergaminho”, que trazia em um de seus refrãos a histórica frase proferida pelo abolicionista José do Patrocínio, na sacada do Paço Imperial, “Meu Deus, Meu Deus, está extinta a Escravidão! ”, com a exclamação. Essa exclamação foi trocada por uma interrogação já em 1988, quando da comemoração do Centenário da Abolição. Nessa ocasião a Mangueira trouxe outro grande samba, quase um lamento, “ 100 anos de liberdade, realidade ou ilusão? ” (Será que já raiou a liberdade ou se foi tudo ilusão? / Será que a Lei Áurea tão sonhada, há tanto tempo assinada/ não foi o fim da escravidão?). Mantendo a qualidade dos 2 sambas citados, Tuiuti nos mostra a realidade do negro no Brasil, com um samba de igual quilate. Não, não chegarei ao ponto de dizer que “Meu Deus, Meu Deus está extinta a Escravidão? ”. É uma mistura dos dois sambas, mas que com o tempo pode ter importância parecida sim, até porque só podemos apontar a perenidade de uma obra com o passar dos anos. Mas com certeza podemos afirmar que é o mais importante samba do mais importante desfile da agremiação de São Cristóvão.

O samba é de autoria de bons nomes da agremiação como Jurandyr, Dona Zezé, Anibal e dois gênios da raça, Moacyr Luz e Claudio Russo. É uma composição feita por encomenda, isto é, não houve um concurso interno para a sua escolha, o que facilitou a feitura do samba, porque na certeza de que seria o hino da escola, o samba pôde ser feito com mais calma e com ousadia. Sim, porque o samba é ousado, ele sai do padrão comum das Escolas atuais e bota uma poesia que vem sendo deixada de lado em detrimento da funcionalidade dos sambas, presos na camisa de força imposta por contar tudo que as sinopses pedem. Um samba com beleza melódica e de letra como poucas hoje em dia e que toca fundo na ferida. Se o belo samba da Mangueira falava em “ livre do açoite da senzala, preso na miséria da favela “ o samba do Tuiuti fala em “ Áurea como o ouro da bandeira, fui rezar na cachoeira contra a bondade cruel”.

Vale aqui citar outro samba de 1988, que também toca no assunto Escravidão. A música aguerrida da campeã Vila Isabel que fez da Sapucaí sua “Kizomba”, fez de seu samba um canto de guerra. Se Kizomba berrava “ ôô Nega Mina, Anastácia não se deixou escravizar “, o Tuiuti gritou “ Não sou escravo de nenhum senhor “.

É um hino, um samba para não ser esquecido, uma bela trilha sonora para um grande desfile, uma música que comove, tem beleza e nos entristece por saber que a realidade do negro não mudou muito seja em relação a 1888, seja em relação aos citados sambas de 1988.

Um dia irá mudar.

Um dia irão libertar o Cativeiro Social.

Seguem abaixo 2 links com o samba do Tuiuti na quadra, com seus intérpretes oficiais, Nino do Milênio, Grazi Brasil e Celsinho e uma versão acústica com Grazi Brasil. 

https://m.youtube.com/watch?v=aykxVYBHyEk https://m.youtube.com/watch?v=BcAeAW4sjiw

Autor: Dr. Walkir Fernandes Jr.

Reumatologista da SRRJ