OKOLOFÉ
Reza a tradição que agosto é o mês do desgosto. Rima pobre à parte, justiça seja feita, setembro sim, foi negro para a Cultura Brasileira. E chegou chegando, com as labaredas da incompetência e da omissão que destruíram, já no dia 02, o rico acervo do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, que enlutou fortemente nosso país. Sobre esse assunto muito já foi dito e fica aqui o registro e o lamento. Já no dia seguinte, 03, perdemos José Hugo Celidônio, grande chefe de cozinha, que mudou o perfil da gastronomia carioca, trazendo qualidade e requinte, com o famoso Clube Gourmet, com livros e artigos em diversos jornais e revistas.
E assim seguiu setembro, levando no dia 05 a atriz Beatriz Segall, nossa eterna Odete Roitmann; dia 09 o cientista político e escritor Helio Jaguaribe, de quem tive o prazer de ler o excelente “Brasil: alternativas e saídas “. O cantor e compositor Tito Madi nos deixou no dia 26 e fechando o mês, a cantora Angela Maria, última grande voz da Era do Rádio. Todas perdas importantes para nossa Cultura.
Mas gostaria de destacar aqui uma perda tão importante, quanto pouco comentada, a do grande Wilson Moreira, verdadeiro baobá do samba brasileiro, que saiu de cena no dia 07 de setembro, aos 81 anos. Nascido em 12 de dezembro de 1936, foi criado no bairro de Realengo. Herdou de sua família a cultura musical. Seus pais e avós adoravam se divertir ao som de ritmos africanos como o jongo, caxambu e o calango. Sua mãe, como o seu pai, era grande defensora das tradições musicais africanas.
Aos 9 anos, perdeu o pai e teve de trabalhar para ajudar em casa, mesmo assim persistiu na escola. Foi então vendedor de amendoim, cocada, entregador de marmita, engraxate, guia de cego e mais tarde seria guarda de presídio, profissão que o acompanharia por cerca de 35 anos. O samba era a sua grande paixão. Com 12 anos já observava atentamente o batuque das escolas de samba. Passou a compor e logo seria diretor de ala e um dos primeiros integrantes da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel, onde integrava a ala dos compositores e a bateria (começou oficialmente na Mocidade aos 15 anos). Aos 29 anos gravou o seu primeiro compacto, passando a ser gravado por grandes intérpretes da MPB. Em 68 transferiu-se para a Portela, onde encontraria grandes parceiros e amigos como Paulinho da Viola, Candeia, Natal e muitos outros, fazendo da escola sua bandeira.
Grande partideiro, entre seus maiores sucessos estão “Mel e Mamão com Açúcar” e “Senhora Liberdade”, ambos de parceria com o sambista Nei Lopes, que com ele formou uma dupla seminal na história da melhor música brasileira. A parceria foi uma das mais bem-sucedidas da história do samba, rendendo dois discos antológicos. O primeiro, “A Arte Negra de Wilson Moreira e Nei Lopes”, lançado em 80, contém clássicos como “Goiabada Cascão” e “Gostoso Veneno”. O segundo, “O Partido (Muito) Alto de Wilson Moreira e Nei Lopes”, de 1985, traz “Fidelidade Partidária” e “Eu Já Pedi”, entre muitos outros.
Em 1986 gravou o primeiro álbum individual, “Peso na Balança”. Wilson fez dois discos especialmente para o mercado japonês pela gravadora japonesa Bomba Records: “Peso na Balança” e “Okolofé”. Esses discos contavam com grandes instrumentistas brasileiros.
Teve suas músicas gravadas por uma infinidade de estrelas da música brasileira: Clara Nunes, Elizete Cardoso, Candeia, Alcione, Beth Carvalho, Jair Rodrigues, Emílio Santiago, Martinho da Vila, D. Ivone Lara, Jovelina Pérola Negra, Zélia Duncan, Djavan, Chico Buarque, Sandra de Sá, Dudu Nobre, Leny Andrade, Elza Soares, Zezé Motta, Moacir Luz, Jorge Aragão e muitos outros.
Em 97, Wilson Moreira sofreu um derrame que o deixou parcialmente imobilizado. Diversos shows foram realizados pelos colegas sambistas com objetivo de arrecadar fundos para o tratamento do cantor e compositor, que mostrou boa recuperação.
Melodista inspirado, foi a meu juízo, o maior da história do samba carioca. Tive oportunidade de conhecê-lo pessoalmente no Centro Cultural Wilson Moreira, um misto de bar e terreiro de rodas de samba, localizado ao lado da vila onde morava, na Rua Barão de Ubá, Praça da Bandeira, a poucos metros de onde nasci e fui criado. Nessa ocasião me impressionou muito aquele homem alto, já com seu dimídio esquerdo comprometido e cujo aperto replicas de relogios de mão me fez entender o porquê de seu codinome “Wilson Alicate “.
Wilson Moreira foi militante do partido mais alto do samba. Fez arte para o povo. Talvez o povo, para quem Wilson fez arte, nem ligue o nome do compositor aos muitos sambas que vem cantando desde os anos 1970. Fiel às tradições do samba e defensor implacável da senhora liberdade, o compositor deixa obra militante, mas nunca panfletária. Obra em forma de samba, canal que propagou a arte negra de Wilson Moreira, compositor que deu pérolas aos povos.
Como não poderia faltar, lá vai uma listinha de grandes sambas do bamba Wilson Moreira, que podem ser escutados no Spotify, e um vídeo bem legal do Mestre no Youtube :
- Gostoso Veneno - Wilson Moreira e Nei Lopes
- Senhora Liberdade - Zezé Motta
- Candongueiro - Clara Nunes
- Judia de Mim - Djavan
- Só Chora Quem Ama - Roberto Ribeiro
- Coisa da Antiga - Clara Nunes
- Mel e Mamão com Açúcar - Fundo de Quintal
- Quintal do Céu - Jorge Aragão
- Samba de Irajá - Nei Lopes e Chico Buarque
- Não Foi Ela - Zeca Pagodinho
- Goiabada Cascão - Beth Carvalho
- Formiga Miúda - Casuarina
- Oloan - Wilson Moreira
- Jongo do Irmão Café - Mariana Baltar
- Gotas de Veneno - Nei Lopes e Emilio Santiago
- Ao Povo em Forma de Arte - Martinho da Vila